Trabalho em vídeo e Developing


O atelier de design Bolos Quentes iniciou a sua actividade no ano de 2002, altura em que quatro estudantes do curso Design de Comunicação da Faculdade de Belas Artes do Porto decidiram partilhar ideias, conhecimentos, interesses e, não com menos importância, a renda de um espaço. Oito anos mais tarde e depois de passarem por vários espaços da cidade do Porto, o atelier continua activo e em permanente ascensão, estando agora sediado num dos robustos edifícios da Avenida dos Aliados, coração da baixa portuense. No final de 2008 os Bolos Quentes alteraram pela primeira (e única) vez no seu percurso a formação inicial; com a saída de Miguel Marinheiro, o grupo passou contar apenas com três elementos: Albino Tavares, Duarte Amorim e Sérgio Couto.

A formação numa escola de belas artes e o envolvimento com espaços e personagens ligados à cena artística do Porto (entre 2002 e 2007, espaços como o PêSSEGOpráSEMANA e o Salão Olímpico encontravam-se ainda em actividade e em diálogo constante com a Faculdade de Belas Artes), podem ser apontadas como as principais razões para que o trabalho dos Bolos Quentes recorra a processos criativos e soluções plásticas de uso menos comum dentro do design gráfico. Parte dos trabalhos dos Bolos Quentes, observados fora de um contexto ou portfolio de design, parecem pertencer menos a um atelier de design do que a um colectivo artístico, ainda que, na maior parte dos casos, estejam a responder directamente ao pedido de um cliente. Esta ideia é especialmente reforçada se tivermos em atenção os trabalhos em vídeo e a desconstrução que o colectivo desenvolve nas suas abordagens à imagem em movimento. De certa maneira, cada vídeo é para os Bolos Quentes como um novo pretexto para continuar a explorar este suporte ao nível conceptual e técnico. O aproveitamento de equipamentos e processos obsoletos dentro da tecnologia de vídeo, é um dos pontos de partida mais prolíferos para um corpo de trabalho coerente e consciente.


O video clip para o tema Spong Ice de Último (2008) é talvez um dos exemplos mais representativos da metodologia de trabalho dos Bolos Quentes; contar um pouco da história deste vídeo é como sublinhar as principais ideias esboçadas até agora nos parágrafos anteriores. Segundo as palavras dos próprios Bolos Quentes este foi um trabalho auto-proposto que “surgiu por acaso”. A oportunidade de usar uma câmara de 16 mm surgiu através do contacto com um grupo de amigos e todo o trabalho teria de ser pensado e filmado em apenas dois dias, período em que a máquina estava disponível; para agravar a situação, só tinham três minutos de película. Perante estas limitações, optaram por usar a música Spong Ice de Último pois, não só “encaixava” no tempo disponível, como já estava editada pela Ástato-CDR (editora criada em 2005 por Albino Tavares, Duarte Amorim e João Marrucho); estas contingências ditaram o ponto de partida para um vídeo que, para surpresa dos próprios autores, acabaria por ser distinguido com o prémio para Melhor Music Video no Ottawa Internacional Animation Festival (OIAF 08). Este reconhecimento internacional ganha importância redobrada se considerarmos o carácter low budget de toda produção. Em traços gerais, o vídeo resume-se a uma intervenção manual sobre duas personagens que dançam a mesma música a velocidades diferentes; os desenhos são feitos com marcadores coloridos directamente sobre a película de 16 mm e os actores são o Albino Tavares e o próprio Último (Pedro André), também ele amigo próximo do colectivo e, na altura, estudante nas Belas Artes.


Mais recentes, são os dois vídeos para os temas dos Peixe Avião "A espera é um arame" e "Camaleão", apresentados respectivamente em 2008 e 2009. Mais uma vez, ambos os trabalhos põem à prova uma ideia prévia que visa explorar e desconstruir os próprios meios utilizados, nunca esquecendo as temáticas ou conceitos que envolvem as músicas em questão. Em A espera é um arame, a banda toca num espaço claustrofóbico, de acabamentos visivelmente rudimentares. O cubo de 175 cm de aresta é iluminado por uma complexa instalação eléctrica de aspecto precário e as inúmeras lâmpadas que pendem sobre os músicos, parecem acender e apagar aleatoriamente. Na verdade, cada uma das luzes deste cenário reage caprichosamente a um som específico produzido pela banda: a voz, as teclas, a bateria, etc. Resumindo, este vídeo filmado 16 mm, acaba por ser um exercício de interdependência entre o som e a imagem, uma vez que é a musica tocada que produz e impõe o ritmo da iluminação, essencial para a captação da imagem. Camaleão, o segundo video clip do Bolos Quentes para os Peixe Avião, recorre ao efeito Chroma Key de uma forma completamente denunciada. A técnica que é usada normalmente para iludir o espectador da presença de elementos que, na realidade, não existiam fisicamente no local da filmagem, é utilizada neste vídeo somente pelo seu potencial plástico na resolução de uma ideia, a metamorfose constante entre os elementos da banda e a imagem de fundo.


O último vídeo dos Bolos Quentes, Developing, com três minutos de duração, distingue-se dos anteriores por diversas razões: não foi feito ou pensado para responder a um cliente, foi apresentado num espaço destinado a apresentação de projectos artísticos e tem um carácter crítico e narrativo bastante mais evidente do que qualquer outro vídeo deste colectivo.
A chave deste trabalho é a dicotomia, conceito que é explorado por um exercício de comparação entre situações ou imagens diametralmente opostas. O Espaço Campanha no Porto e o Guggenheim Museum em Nova Iorque, assim como as cores em negativo e positivo do próprio filme, são os elementos que se confrontam de forma mais clara. Todas as ideias do vídeo são amplificadas pela presença de uma bandeira nacional de cores invertidas (peça original de João Marçal intitulada A Maria e apresentada em 2006), transportada por um indivíduo (Duarte Amorim) de modo informal. Esta bandeira, não só reforça visualmente a oposição entre positivo e negativo, como introduz um potencial crítico e reflexivo, que remete para a identidade artística do país (mais concretamente da cidade do Porto), e sua relação com contextos exteriores de grande reconhecimento. Developing, o título da obra, tem aqui um duplo sentido, uma vez que refere simultaneamente o processo de revelação do filme (película de 16 mm, neste caso particular) que envolve sempre uma relação entre negativo/positivo e uma hipotética revelação de um artista português no estrangeiro e na cena artística de top mundial.


Para além do vídeo, na exposição do espaço Fundação, os Bolos Quentes apresentam uma série de seis impressões fotográficas, ampliadas a partir de frames do vídeo. As imagens seleccionadas coincidem exactamente com o momento em que a personagem passa atrás de uma árvore, estando por isso parcialmente, ou mesmo completamente, oculta.
Aqui, a solução encontrada insiste novamente na possibilidade de uma crítica à identidade e visibilidade nacional.

Fevereiro 2010

João Marçal